João Calvino (1509-1564) e Martinho Lutero (1483-1546) são os dois maiores nomes da Reforma Protestante, tendo influenciado grandemente as correntes que receberam seus nomes. Embora tivessem como objetivo comum a restauração do verdadeiro Evangelho e a oposição ao Anticristo papal, divergiam em crenças sobre a doutrina e o culto cristão, o que distanciou as duas denominações. Ainda assim, pouco se fala sobre o que pensavam um do outro, se dialogaram entre si, como os reformadores frequentemente faziam.
Trago, portanto, duas cartas de Calvino que trarão luz à opinião que ele possuía do grande reformador. A primeira delas foi dirigida ao próprio Lutero, escrita no penúltimo ano de sua vida. Ele buscava a instrução de Lutero quanto aos "nicodemitas franceses", ou seja, pessoas que se converteram à fé reformada mas em nada mudaram sua profissão pública de fé, vivendo como católicos exteriormente. Calvino já havia sido rigoroso e eles esperavam que Lutero fosse mais suave e prático e pediram para que o reformador se encontrasse pessoalmente com ele, o que não pode fazer por questões financeiras [1]. Por isso, escreveu a carta à Lutero, mas para se precaver de ser ignorado, enviou-a para Melanchton (1497-1560), seu amigo pessoal e aliado de Martinho, esperando que ele a entregasse.
É lamentável, porém, saber que a carta nunca chegou à Lutero, pois Melanchton estava ciente de como ele era irritadiço quanto aos suíços. Desde o Colóquio de Marburgo (1529), Lutero abominava Zuínglio (1494-1531) e todos os seguidores da fé reformada, os "sacramentários" como os considerava, chamando-os de fanáticos e blasfemos [2]. Martin Bucer (1491-1551) fazia o possível para unir os dois partidos mas os suíços recusaram a Concórdia de Wtitenberg (1536), assinada pelos luteranos e reformados alemães, e Lutero por sua vez desistiu de vê-los mudarem de ideia.
Se Lutero nos aceitasse com nossa confissão, não há nada que eu poderia desejar mais (Calvino) [3]
Um pouco antes da carta de Calvino, em 1544, Lutero escreve "Uma curta confissão sobre o Santo Sacramento" onde acusa Zuínglio e Ecolampádio (1482-1531), ambos já falecidos a essa altura, de hereges e assassinos de almas. Mesmo após a morte de seus adversários, Lutero não amenizava as críticas ferozes contra eles.
Talvez para precaver uma maior contenda, Melanchton impediu que ele lesse a carta, já ciente do temperamento irritadiço de seu parceiro.
Apesar disto, é interessante ler o conteúdo da carta, pois revela muito mais sobre quem Calvino era do que o próprio Lutero. Ele sempre quis conhecer o lendário reformador, mas a diferença de idade, 26 anos, e a distância geográfica impediram esse encontro. A teologia de Calvino recebeu grande influência por parte do alemão e mesmo a contenda com os suíços não impediu que Lutero elogiasse a resposta do reformado ao Cardeal Sadoleto [4]. "Genebra era, de certo modo, uma ponte entre Zurique e Wittenberg" [5], tanto no sentido diplomático, quanto no teológico, visto que a visão eucarística professada por Calvino foi vista como um equilíbrio entre os dois extremos. Em seu tratado dedicado ao assunto, criticou ambos, e cria que a insistência de Lutero no assunto impedia uma unidade reformada [6]
Para Calvino, o maior problema daquele que "levava a tocha" do Evangelho era seu temperamento e orgulho, que levava a uma tenacidade incorrigível, mas sempre o teve como um grande servo de Cristo a quem todos deviam enormemente. Em sua carta ao sacro-imperador Calvino demonstrou crer em uma unidade do protestantismo, a despeito da diversidade interna, demonstrando ser otimista quanto ao estado da igreja protestante. Não havia para ele maior desejo do que proclamar o evangelho junto com as igrejas alemãs [7], assim como Zuínglio, entre lágrimas, disse em Marburgo:
Não há pessoas na terra com quem eu preferiria ser um do que os Wittenberganos (Luteranos) [8]
Calvino teve longas disputas com os luteranos suscedentes, mas a sua relação indireta com o reformador foi em maioria positiva, mais do que alguns imaginariam. Isso é revelado especialmente na segunda carta, dirigida a Heinrich Bullinger (1504-1575), após o tratado sobre o sacramento ter sido escrito e ofendido a eles. Calvino, portanto, os aconselha relembrando dos grandes feitos de Lutero e como todos devem muito a ele pela defesa do evangelho, apesar do seu temperamento explosivo.
São textos interessantes que aprofundam mais a relação interna dos teólogos estudados até a atualidade
NOTA: A tradução foi feita por mim do inglês para o português e todos os grifos são de minha autoria.
"Meu pai espiritual, quero vê-lo" - A carta
Ao exclente pastor da Igreja Cristã, doutor Martinho Lutero, meu mui respeitado pai
Quando vi que meus compatriotas franceses, muitos quantos são os que foram trazidos das trevas do papado à íntegra fé, não mudaram em nada quanto à sua profissão pública e que continuaram a corromper a si mesmos com o sacrílego culto dos Papistas, como se nunca tivessem experimentado o sabor da sã doutrina, eu estava completamente incapaz em me conter de reprovar tão grande indolência e negligência, do modo que achei merecido. Como, portanto, pode esta fé, que habita oculta no coração, faça outra coisa senão irromper na confissão desta mesma fé? Que tipo de religião pode ser esta que permanece submersa sob aparente idolatria? Eu não me proponho, porém, a lidr com o argumento aqui, porque já o fiz extensivamente em dois pequenos tratados, nos quais, se não lhe for incômodo dar uma olhada neles, você perceberá mais claramente o que penso e os motivos que me compeliram a formar esta opinião.
Pela leitura deles, de fato, alguns de nós, os quais até agora adormeciam em falsa segurança, foram despertos, e começaram a considerar o que eles devem fazer. Mas porque é difícil deixar de lado todas as consideração de si mesmo para expor suas vidas ao perigo, ou tendo desperto o disprazer da humanidade para encontrar o ódio do mundo, ou tendo abandonado suas expectivas em casa na sua terra natal, para entrar em uma vida de exílio voluntário, eles são presos ou reprimidos por essas dificuldas para alcançarem uma firme determinação. Eles colocam outras razões, contudo, e aquelas um tanto ilusórias, as quais percebe-se que eles apenas buscam encotnrar algum pretexto ou outro. Nestas circunstâncias, porque eles permanecem de algum modo em suspense, são desejosos para ouvir sua opinião, que eles merecidamente têm em reverência, portanto serviria grandemente confirmá-los. Eles portanto me pediram que enviasse um mensageiro confiável a você, que possa relatar sua resposta sobre essa questão.
Porque pensei que era de grande consequência à eles terem o benefício de sua autoridade, para que não flutuem continuamente, e eu mesmo permaneço precisava disso, estava relutante em recusar o que eles pediram.
Agora, portanto, mui respeitado pai no Senhor, eu lhe suplico por Cristo, que você não se arrependerá em assumir esse fardo pela causa deles e por mim, primeiro, que você leia a epístola escrita em seus nomes e meus pequenos livros, rapidamente e nas horas de lazer, ou que você peça a alguém para se dar ao trabalho de ler e relatar a substância deles à você.
Por último, que você escreva de volta sua opinião em poucas palavras. Certamente, estou hesitante em lhe dar trabalho em meio a tantas pesadas e variadas ocupações; mas tal é seu senso de justiça, que você não pode supor que eu tenha feito isso senão compelido pela necessidade do caso; eu, portanto, confio que você me perdoará. Quem dera pudesse voar até você, para que ainda que por poucas horas desfrutasse da felicidade de sua companhia, pois eu preferiria, e seria muito melhor, não apenas sobre essa questão, mas sobre outras, conversar pessoalmente com você; mas vendo que isso não nos é garantido na terra, espero que em breve ocorrerá no Reino de Deus.
Adieu, meu mais renomado senhor, mais distinto ministro de Cristo e sempre hoinrado pai. O próprio Senhor o governe e o conduza pelo seu próprio Espírito, para que você persevere até o fim, para o benefício comum e bem de sua própria Igreja.
"Ainda que me chamasse de diabo, o honraria" - Carta de Calvino sobre Lutero para Bullinger
Eu ouvi que Lutero enfim irrompeu exaustivamente em ferozes ofensas, não tanto contra você como contra todos nós.
Na atual ocasião, ouso arriscar a lhe pedir que se mantenha calado, porque não é justo que pessoas inocentes sejam assim maltratadas, nem que a elas deva ser negada a oportunidade de se esclarecerem; por outro lado, não é fácil determinar se seria prudente a elas fazerem isso. Mas disso eu sinceramente desejo que você se lembre, em primeiro lugar, que você considere o quão eminente Lutero é, e os excelentes dons com os quais ele é dotado, com uma força de mente e constância resoluta, com tão grande habilidade, com tão grande eficiência e poder de afirmação doutrinária, ele anterioremente devotou toda sua energia para derrubar o reino do Anticristo e ao mesmo tempo difundir amplamente a doutrina da salvação. Muitas vezes eu costumava declarar, ainda que ele me chamasse de diabo, eu ainda assim permaneceria o honrado e o reconhecendo como um ilustre servo de Deus.
Mas embora ele seja dotado de raras e exclentes virtudes, ao mesmo tempo ele trabalha sob sérios defeitos. Quem dera ele tivesse estudado para frear esse temperamento irritadiço e inquieto que é tão apto a transbordar em todas as direções. Eu desejo, além disso, que ele tivesse sempre entregue os frutos da veemência desse temperamento natural sobre os inimigos da verdade e não que ele tivesse acendido seu raio algumas vezes sobre aqueles que também são servos do Senhor. Quem dera fosse ele mais atento e cuidadoso no reconhecimento de seus próprios vícios.
Bajuladores causaram a ele muito mal, visto que ele é naturalmente muito propenso a ser demasiado indulgente consigo mesmo. É nossa parte, contudo, reprovar quaisquer qualidades más que possam prejudica-los, assim como devamos fazer uma certa concessão a ele em razão destes notáveis dons com os quais ele foi presentado. Isto, portanto, eu imploraria que você considerasse acima de tudo, junto com seus colegas, que vocês tem que lidar com um distinto servo de Cristo, a quem todos nós devemos grandemente.
Ademais, vocês não fariam bem a vocês mesmos brigndo, exceto oferecer algum divertimo aos ímpios, para que eles triunfem não tanto sobre nós, mas sobre o Evangelho. Se eles nos verem separando-nos, então dão total crédito ao que dizemos, mas quando um consente e com uma só voz pregamos a Cristo, eles se valem injustificadamente de nossa fraqueza inerente para lançar reprovação sobre nossa fé. Eu desejo, portanto, que você considere e reflita essas coisas ao invés do que Lutero merecia por sua violência, para que não ocorra a você o que Paulo alerta, que "se vos mordeis e devorais uns aos outros, cuidado para não vos destruirdes mutuamente". Ainda que ele tenha nos provocado, devemos negar a contenda ao invés de aumentar a ferida pelo naufrágio geral da Igreja
Tracts and Letters of John Calvin (Edinburgh: Banner of Truth, 2009)
BIBLIOGRAFIA:
FARRIS, Allan L. "Calvin's Letter to Luther". Canadian Journal of Theology, Toronto, v.10, n.2, abr./mai.1964.
HERON, Alasdair. ""If Luther Will Accept Us with Our Confession...":
The Eucharistic Controversy in Calvin's Correspondence up to 1546". Calvin Studies XII, Due West, 2006.
SELDERHUIS, Herman J. "Martin Luther and John Calvin". Southern Baptist Journal, Louisville, v.21, n.4, dez./feb. 2017.
TIMOTHY, George. "Theology of the Reformers". Nashville:Broadman Press, 1988.
REFERÊCNIAS:
[1] FARRIS (1964), p.124
[2] ibid., p.125.
[3] HERON (2016), p. 25
[4] SELDERHUIS (2017), p.147
[5] ibid., p.148
[6] ibid., p.152
[7] ibid., p.158
[8] TIMOTHY (1988), p.150.


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