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Entre a fé e a dúvida no Natal: a diferença entre as respostas de Maria e de Zacarias no evangelho de Lucas


    

    O Natal é uma época que é sempre associada à imagens positivas. Esperança, amor, alegria, família, dentre tantas outras, preenchem nossas mentes durante essa temporada. Não é por menos, pois acima das festividades culturais que o mundo criou, há o motivo maior de alegria: a comemoração do nascimento do nosso Senhor e Salvador, Jesus Cristo, que veio ao mundo há mais de dois mil anos. 
    Contudo, a história do nascimento de Cristo não foi pura felicidade. Os relatos dos evangelhos mostram rejeição (Lc 2.7), mentira (Mt 2.8), perseguição (v.13), matança e lamento (v.17-18), em suma, a presença da maldade humana ao lado do glorioso evento da vinda de Cristo. Quero me concentrar, porém, em um elemento específico: a dúvida. Estamos acostumados a enfatizar a virtude e a fé dos personagens envolvidos diante das mensagens celestiais. José recebeu sua noiva mesmo sob o risco da infâmia, obedecendo à ordem angelical (Mt 1.18-24); os magos confiaram no misterioso sinal de uma estrela e obedeceram ao aviso que lhes foi dado em sonho para não voltarem a Herodes (Mt 2.1-2); e, principalmente, Maria se submeteu com humildade às palavras do anjo sobre seu grande chamado, mesmo sem compreendê-lo (Lc 1.38).  Mas e quando a fé parece ser insuficiente? Afinal, o nascimento de Jesus envolveu milagres desde antes da concepção, começando no nascimento daquele que deveria preparar o caminho para a sua pregação. Os escolhidos para essa missão foram Zacarias e Isabel, um casal justo e irrepreensível aos olhos de Deus (Lc 1.6). Durante o anúncio feito pelo anjo Gabriel ao sacerdote Zacarias, enquantorealizava a oferta do incenso (Lc 1.13-16), este olhou apenas para as circunstâncias humanas e respondeu "Como saberei isto? Pois eu sou velho, e minha mulher, avançada em dias" (v.17). Como consequência de sua resposta, o anjo o deixou mudo até que se cumprisse a promessa, como forma de juízo (v.20).
    Há um paralelo muito curioso: o mesmo anjo, Gabriel, aparece subitamente para Zacarias e Maria (v.11-12, 26-28); ambos ficam perturbados com sua presença e cheios de temor; ele os tranquiliza e anuncia o nascimento improvável (v.13-17, 30-33); ambos fazem perguntas sobre o ocorrido, trazendo as impossibilidades humanas - esterilidade e senilidade (v.18) em um caso e virgindade no outro (v. 34); o anjo, por fim, encerra o anúncio, reforçando o cumprimento da promessa e a soberania de Deus acima das impossibilidades (v.20, 37). Qual a diferença, então, entre o agir de Zacarias e o de Maria? Por que um foi advertido e o outro não? É isto que nós iremos ver. 
    Desde já, deixo claro que não vou entrar na discussão sobre a celebração religiosa do Natal. Por muito tempo os reformados foram contrários à sua celebração, sendo inclusive proibido durante o domínio puritano na Inglaterra. Contudo, seguindo o entendimento de muitos reformados hoje, defendo a liberdade cristã de utilizar este período para uma finalidade correta, o de trazer à tona o nascimento de Cristo.

O propósito: o Messias e o Elias

    Antes de analisar o agir dos pais, é necessário entender que o propósito daqueles que foram concebidos implica na escolha daqueles que o geraram e na forma de seus nascimentos. Por que Jesus tinha de nascer de uma virgem e por que João Batista era especial? Em ambos os casos, o propósito já havia sido revelado muito antes dos eventos, através de palavras proféticas.
    A vinda do Messias foi predita inúmeras vezes ao longo das Escrituras e seria exaustivo citar todas as menções, visto que o Novo Testamento inteiro faz referência a elas. Desde a Queda era prevista a vinda de um descendente para desfazer a inimizade entre os homens e Deus (Gn 3.15), cuja identidade vai sendo progressivamente revelada. Parte central da pessoa deste Redentor é o fato de descender da linhagem de Davi (2 Sm 7.15-16) e ser plenamente humano, capaz de portar o sofrimento da humanidade, conforme a mais clara passagem sobre Cristo no Antigo Testamento, Isaías 53. Ao mesmo tempo, enquanto Ungido do Senhor, seria não apenas um escolhido como Davi, mas o próprio Deus entre nós, o Deus Forte e Príncipe da Paz (Is 9.6).
    Era necessário, portanto, que ele viesse de uma mãe humana descendente da linha davídica, recebendo dela toda a plenitude da natureza humana, mas fosse concebido sem pecado, por obra do Espírito Santo, pois seria a própria Palavra encarnada (Jo 1.14). Todo aquele que nasce de conjunção carnal humana porta em si o pecado de nossos primeiros pais, Adão e Eva (Gn 6.5); logo, a única forma de cumprir o propósito era através do que foi profetizado por Isaías séculos antes: "Eis que a virgem conceberá e dará à luz um filho e lhe chamará Emanuel" (Is 7.14). Assim aconteceu e Deus escolheu para isso Maria, virgem e prometida em casamento a José (Mt 1.23)
    Entendemos, então, o chamado de Maria, sua importância e a necessidade do nascimento virginal, operado por obra do Espírito Santo de forma milagrosa. 
    E João Batista? Além da promessa da vinda do Messias, o Antigo Testamento se encerra com a promessa da vinda do profeta Elias, o qual antecede o temível Dia do Senhor (Ml 4.5-6). Seu propósito é o de preparar o caminho do próprio Senhor, ministrando nos corações das pessoas o arrependimento para que este declare a mensagem da vinda do seu Reino (Ml 3.1). Assim, o povo aguardava a vinda de um grande profeta que precedesse a vinda do Messias, o qual deveria fazer sinais milagrosos assim como seu antecessor Elias.

A pergunta: Como saberá ou como ocorrerá?

    Entendido o propósito da vinda de cada um, partimos para as reações de seus pais ao receberem o anúncio de sua chegada. Se ambos os casos eram miraculosos e surpreendentes, não faz sentido questionar? Por que Zacarias recebe um tratamento diferente do anjo? Apesar de parecidas, as perguntas de Maria e de Zacarias tem uma distinção sutil, mas muito importante, e que revela as verdadeiras intenções por trás delas.      
    A primeira frase de Zacarias é "Como saberei isto?". Sua pergunta é um paralelo direto com a de Abraão, quando este recebeu a promessa sobre sua descendência, ao dizer "Senhor Deus, como saberei que hei de possuí-la?" (Gn. 15.8). Em resposta, Deus ordena uma espécie de sacrifício através do qual manifesta Sua presença e sela com ele a sua aliança (Gn 15.17-18). A Escritura deixa claro, porém, que ele primeiro creu no Senhor (Gn 15.6), e depois pediu o sinal.
    Esse não é o caso de Zacarias. Ainda que fosse sacerdote e sem dúvida conhecesse as histórias em que apesar da esterilidade das mulheres Deus agiu para que nascessem filhos, como ocorreu com Sara (Gn 21.2), Rebeca (Gn 25.21) e Raquel (Gn 30.22-23), o anúncio do anjo não suficiente para que acreditasse, levando-o a exigir um sinal a mais. 
    A pergunta de Maria, por sua vez, é "Como será isto...". O texto ressalta que Maria estava muito perturbada e sem compreender ao certo as palavras do anjo logo em sua saudação (v.29), quanto mais diante de um anúncio tão inesperado quanto a ideia de uma virgem dar à luz. Diferente dos casos de concepção estéril, que encontra precedentes nas Escrituras, nunca houve nenhuma virgem que tivesse dado à luz até aquele momento, singularidade que se justifica pela diferença no propósito de cada um, conforme explicado acima. Mais do que isso, ao que indica a frase do anjo, Zacarias orava a Deus para que este revertesse a esterilidade de sua mulher, demonstrando previamente sua intenção de que isto ocorrese. Maria, enquanto isso, nunca havia orado por algo que sequer passou pela sua mente, encontrando-se com o anjo completamente desprevenida e incompreendida.  Assim, a dúvida de Maria é sobre o proceder, e não sobre a possibilidade.
    Maria se submete prontamente como escrava de Deus - a palavra serva tem o significado de escrava, alguém sem vontade própria - e está disposta a cumprir a Sua vontade de imediato (v.38). Sua pergunta, portanto, não tem um tom de ceticismo, mas de busca por legítimo entendimento. Naturalmente, sua curiosidade não é satisfeita por completo. O anjo não detalha como se realizará a concepção por meio do Espírito Santo e não entra na minúcia da obra divina. A expressão que ele utiliza para descrever o agir do Espírito, "cobrirá com sua sombra", é ambígua e mostra o caráter excepcional e único do nascimento virginal, resumindo o evento maravilhoso que estava prestes a ocorrer com ela: o mesmo Espírito que um dia pairou sobre as águas da Criação (Gn 1.2) e encheu os homens de Deus do passado agora enche Maria e forma dentro dela um ser humano divino sem qualquer mancha de pecado (Hb 4.15). 
    Deste modo, o anjo notou a diferença entre o agir de Maria e o de Zacarias, em que uma revelou humildade e submissão, enquanto o outro demonstrou ceticismo e incredulidade.

O sinal: fé e incredulidade

    Isto fica mais claro diante da resposta do anjo, que logo após a frase de Zacarias, apresenta-se: "Eu sou Gabriel, que assisto diante de Deus, e fui enviado para falar-te e trazer-te estas boas-novas" (Lc 1.19). É importante notar que o mesmo não ocorre com Maria. Ao primeiro ele diz o seu nome, algo raro na Escritura visto que apenas dois anjos são nomeados (além dele, apenas o arcanjo Miguel), enquanto tudo o que o anjo fala à Maria é sobre sua mensagem. É como se a pergunta de Zacarias levantasse um questionamento ao próprio mensageiro, levando-o a mostrar a sua proximidade com Deus e o papel para o qual foi incumbido.
    Perguntas não são erradas, mas a dúvida cética, sim. Podemos e devemos fazer questões, mas a grande diferença está em nossa intenção por trás. Zacarias pede um sinal, uma confirmação além daquilo que ele já havia presenciado, e embora isto pareça piedoso, pode revelar falta de fé, assim como Gideão, que testou a presença de Deus (Juízes 6.15, 17, 36–40), e os fariseus, que exigiram de Jesus um sinal miraculoso (Mt 12.38-42). Em sua soberania, Deus pode atender por misericórdia, como fez com Gideão; em outros casos, ele pode se negar, como Cristo fez, deixando apenas uma história passada como sinal, o sinal de Jonas. Há ainda o caso de Acaz, em que Deus ordena que este peça um sinal e o rei nega por falsa piedade, sob a premissa de não tentá-lo. O Senhor, então, determina um sinal mesmo assim, independente da sua vontade (Is 7.10-14). Ao contrário de Abraão, em que a fé precedeu o sinal, aqui a certeza autossuficiente de Acaz antecedeu o sinal de Deus, desobedecendo a sua ordenança. O foco, portanto, está no coração e na intenção, não no sinal em si.
    No presente caso, o pedido de Zacarias é atendido parcialmente, pois é lhe dado um sinal comprobatório da palavra da promessa, utilizando do sacerdote como o instrumento desse símbolo por meio de um juízo brando, a mudez. É possível dizer que o sinal foi importante para o povo cresse que João havia de cumprir um propósito especial na história da salvação, conforme prometido. Por nascer naturalmente e pela esterilidade já ter sido superada em outras ocasiões, é possível que seu chamado não ficasse claro para a população. Embora a gravidez seja um grande milagre, a mudez de Zacarias reforça ao público presente o entendimento de que ele recebeu uma visão (Lc 1.22) e favorece a difusão da notícia quando o sacerdote voltou a falar (v. 65-66).

Conclusão

    O agir de Deus é incompreensível. Ele escolhe os loucos para envergonhar os sábios e os fracos para envergonhar os fortes (1 Co 1.27-29), quebra as expectativas, inverte a lógica mundana e reforça sua glória e soberania sobre toda a história.
    Maria deixa isso claro em seu cântico de engrandecimento ao Senhor, declarando alegremente que Deus a fez bem-aventurada por todas as gerações, apesar de sua humildade (Lc 1.46-48). Apesar da incredulidade inicial de Zacarias, a sua expressão de glória e gratidão ao fim de sua mudez mostra a transformação do seu coração e a boca que antes estava encerrada agora é usada como instrumento de profecia e graça, tal como a boca dos profetas foi utilizada no passado (Lc 1.67-79).
    Que neste Natal possamos refletir sobre a imensa graça de Deus diante de nós, desfavorecidos e pecadores, a fim de que confiemos plenamente em suas promessas. Mesmo diante das impossibilidades humanas e de toda improbabilidade, recordemos de tudo o que Deus já fez pelo seu povo e nunca nos esqueçamos de que para o Altíssimo, nada é impossível (Lc 1.37), pois uma vez que Ele entra em ação, não há quem o possa impedir (Is 43.13). 

Deus abençoe a todos vocês!

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